Olavo Rodrigues
7
Entrou num café a partir do tecto. Caiu violentamente, abrindo um buraco e interrompendo a lamechice de um casal ao partir-lhe a mesa de repente. Cacos de vidro e gelado esmagado rodeavam o homem corpulento que parecia ter saído de uma história de super-heróis.
Todos se aproximaram para o analisar, o que deu a ideia de que, por momentos, o tempo parara, pois ninguém se mexia. Além disso, o recém-chegado estava inconsciente, pelo que ninguém sabia exactamente o que fazer.
Ele partira o tecto e, ao virá-lo, a multidão verificou que nenhum pedaço de vidro se entranhara no seu corpo, portanto, devia ser duro de roer. Seria chamar uma ambulância a melhor solução? Que tipo de tratamento se podia dar a um menino destes? Se precisasse de uma injecção, haveria agulha que lhe resistisse?
E que tal chamar a polícia ou mesmo o exército? Sabia-se lá se, quando acordasse, não se revelaria um supervilão. Porém, também podiam levá-lo para lhe fazer experiências esquisitas, mas isso não conviria nada se fosse uma jóia de moço.
Uma menina reparou num dispositivo, perto da mão do homem, que tinha dois botões e, como a curiosidade fala alto nestas idades, aproximou-se e carregou nos dois em simultâneo, alarmando os adultos, que a repreenderam. Em seguida, contra o mau pressentimento colectivo, nada aparentou ter acontecido.
Foi então que repararam que a tal menina desaparecera, bem como o super-herói. Cada pessoa foi desaparecendo sucessivamente sempre que se olhava à volta até só restar um homem. De repente, este ouviu uma pancada no balcão:
- Ó, amigo, posso ajudá-lo? Nós, por acaso, temos mel na testa? - Perguntou o rapaz do casal, indignado. Todos os clientes por ser atendidos refilavam, mas ele não se enquadrava ali.
- O mundo precisa de mim. - Acto contínuo, saiu a voar, partindo o tecto.
Dado que o último texto não é uma história, leiam-no no blogue Toca do Coelho.
Olavo Rodrigues
5
Sou teu amigo, sim. Assim começa a música de um filme muito apreciado na Terra, que, ironicamente, representa, de certa forma, a minha situação. Seres a que os humanos chamam «brinquedos» partilham o mesmo mundo com eles, embora nunca lhes revelem a verdade, fingindo que são inanimados. É também o meu caso, apesar de eu ser um extraterrestre numa missão importante para conquistar o cargo de Guerreiro de Elite que sempre quis e isso envolve explorar mundos desconhecidos.
No entanto, às vezes também preciso de fingir que sou um brinquedo, pois, aparentemente, os humanos passam-se com facilidade.
Isso é preocupante, visto que indica que estão sempre fechados numa bolha e isso torna-os extremamente vulneráveis. Enquanto não interiorizarem que o normal é o inesperado, as suas vidas podem mudar de um momento para o outro e só darão por isso tarde de mais.
A Liliana, a humana com quem estou, hoje quase teve um chilique, porque perdeu o autocarro e chegou atrasada À Reunião. Eu, que sou 150 vezes mais pequeno que ela, já quase, por diversas vezes, fui esmagado, comido por diversos animais (bem como pessoas), já andei nos esgotos, no céu, caí de um arranha-céus, bem! Resumindo, ainda aqui estou, pois no meu planeta a normalidade tem o significado oposto.
Contudo, confesso que às vezes os invejo, considerando que ter um dia tão calmo em que se leva um raspanete do chefe, por ter chegado atrasado À Reunião, vinha mesmo a calhar nem que fosse só uma vez.
A Liliana está a dormir e a babar-se no sofá enquanto o sobrinho vê Toy Story. Como a minha missão está no fim, avisaram-me para não estragar tudo novamente, portanto, obrigar-me-ão a voltar. Mas não posso deixar a Liliana, nós precisamos muito de um do outro. Sou teu amigo, sim.
6
Graças ao meu poder de invisibilidade, consigo examinar quem e o que me rodeia sem que a polícia me repreenda por estar sentada num ecrã ligado ao semáforo. É uma pena que os humanos já não acreditem em fadas como eu ou noutros seres mágicos. Podíamos dar-nos bem, afinal, somos vizinhos há tanto tempo e já partilhámos, inclusive, o mesmo «piso», porém, nós tivemos de nos mudar para a «cave», bem no centro da Terra.
Os humanos também eram criaturas mágicas e faziam coisas que os actuais gostam de adjectivar como «impossíveis», contudo, a certa altura, algo, ainda desconhecido, os infectou com uma doença estranha chamada maldade, que se manifesta como o fogo: começa sendo minúscula e, se não se tiver cuidado, torna-se num bico de obra com uma fome voraz de destruição. Por esta razão, tivemos de os adormecer, portanto, quando acordaram, não tinham poderes nem memória do que alguma vez tinham sido.
A esperança de que eles se curem mantém-se, pois já se notam alguns resultados, embora muitos humanos estejam demasiado entranhados no seu próprio mundo para reparar nisso. Os únicos que conseguem ver-nos são as crianças, mesmo muito pequenas, e os animais, o que leva os adultos a achar que os petizes estão doidos quando os vêem rir-se connosco ou comentam quando se dão conta da nossa presença ou nos ouvem falar.
Estou a estudar a evolução ética, cultural e tecnológica da humanidade e é hora de mudar de lugar. Levanto voo, mas depressa pouso no passeio para os examinar de perto e começo a deslizar nos meus patins ao sabor do vento. Felizmente, não esbarro contra ninguém, porque já tenho, literalmente, séculos de prática.
Um breve olhar é o suficiente para analisar a sua vibração energética e hoje não podia estar mais satisfeita pelo positivismo crescente.