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É Contar e Encantar

Com o que é que te apetece sonhar hoje?

É Contar e Encantar

Com o que é que te apetece sonhar hoje?

É só mais uma comédia romântica (5)

Olavo Rodrigues, 05.09.20

Saco do telemóvel, que me foge das mãos como um sabonete e se esbardalha no chão. Parece que tento respirar com um rinoceronte em cima do peito. Esta miúda é doida! Mais do que eu! Apresso-me a apanhá-lo, magoando-me na cabeça ao bater numa mesa. Isto é uma maluquice pegada! São 18:55! Gaita! O caminho para o telhado ainda é longe, por isso, desato a correr. À medida que me cruzo com outras pessoas, só me escapa “saiam da frente!”. Porque é que não me calhou alguém como a Adriana?!!! Para me dar dores de cabeça já chego eu próprio!

No exterior deparo-me com uma praxe em que há dezenas de pessoas. Ia ser difícil passar a correr sem ir de encontro a ninguém, pelo que abrando e me infiltro na maré de foliões barulhentos, alguns dos quais bêbados. Um dos praxantes, que tresanda a cerveja, barra-me o caminho.

- Aonde é que pensas que vais? Queres baldar-te, é? Aqui ninguém se livra da praxe, espertalhão! Se entraste, só sais quando acabar.

- Não estás a perceber. Não faço…

- Ó, Diogo, olha-me este a querer safar-se. – Grita o rapaz. Num estalar de dedos, o outro aproxima-se e passam a ser dois obstáculos a contornar.

- O que é que fazes longe dos outros caloiros? E porque é que tiraste a camisola da praxe?

- Eu não faço…

- Já lá para a frente. – Vira-se para o primeiro. – Vamos obrigá-lo a beber cerveja enquanto faz o pino.

- Népia, mano. É mais fixe se ele fizer um desenho com a cara cheia de baba de camelo.

- Não, meu. ‘Bora dar um momento de glória ao puto. – Agarro a oportunidade para voltar a correr e acho que aqueles estão com uma broa tão grande, que nem sequer reparam. No edifício principal alcanço, por fim, as escadas que conduzem ao telhado. Assim que lá ponho os pés, berro:

- Para! A vida vale a pena! – Mas estou sozinho. Quando verifico as horas, o telemóvel marca 19:06. Dirijo-me de imediato à beira do telhado e olho para baixo. Porém, tudo está normal: ninguém se desgraçou nem se reuniu um aglomerado de pessoas. Não entendo. – Onde estás?!!! –  Silêncio… vou para outra zona? – Onde estás?!!! – Silêncio… - Aparece!!!

- Estou mesmo atrás de ti. – Sentada numa cadeira que não se encontrava ali, está a Adriana a comer uma travessa de lasanha no colo. Espera, o quê?!

- Ah… como? Porquê? Porquê?!

- És servido?

- Porque é que trouxeste lasanha para o telhado?

- Porque não havia esparguete à bolonhesa, mas isto também é um pedaço do Céu na Terra. Hum! Péssima para o colesterol tal como eu gosto.

- Onde é que estiveste toda a minha vida?

- A tirar bocados de bolo da roupa e do corpo.

- Então, afinal, és mesmo tu a autora das cartas?

- O que é que te parece?

- Porque é que mentiste?

- Que raio de romântico és tu se queres saber logo tudo?

- E precisavas de me assustar de morte?

- Tinha de garantir que vinhas a correr.

- Eu corria de qualquer maneira. Bastava chamares-me.

- Não te bastava um parafuso. Perdeste logo a caixa toda.

- Dá-me um dos bocados com mais queijo.

- Vem cá buscá-lo. – A rapariga dobra, com cuidado, uma folha de lasanha avermelhada do molho e dourada do queijo e enfia-a na boca, deixando metade de fora, além de que salpica o traje no processo. Em seguida, ergue-se devagar e abraça-me. Eu mordo a parte do exterior e também os nossos lábios se abraçam, ainda que por míseros segundos. Há que comer a lasanha primeiro. Pronto, agora sim! Viva a marmelada!

- Sujaste-me com o molho.

- Deixa-te de tretas. Tu fizeste muito pior. – A paleta de tons amarelados, alaranjados e avermelhados do pôr do sol incide sobre nós. Pelo meio das mensagens enviadas através dos lábios a roçar, iluminam-se emoções intensas e ardentes. Um banho de luz e paixão.

 

Tu inventaste toda uma telenovela à volta de uma relação comigo?! Confesso que me sinto mal por ter espreitado o teu diário, mas, ao mesmo tempo, ainda bem que o fiz. Quando te disse que achava piada à tua doidice, não quis incentivar-te a bisbilhotar todos os cantos em que me meto nem a importunares o Joel… e muito menos a viveres numa irrealidade! Há limites, Márcio! E prejudicar um colega e não largar a ficção – especialmente quando se trata de outra pessoa – é pisar o risco.

Sim, naquela tarde foi querida toda a conversa de seres muito carismático, porque também mostraste a tua insegurança e pensei que essa autoestima exacerbada fosse uma defesa. Apesar de estranho, pareceste-me genuinamente humano, mas fantasiares com algo tão mórbido como o suicídio para “eu te ver” é doentio.

O Joel acertou em tudo o que te disse. Esquece que eu existo.

 

PS: Detesto lasanha.

 

Adriana

 

Também eu aproveito a intrusão para te avisar de que o professor aceitou que nos separássemos. Isto era escusado, claro está, pois não estava previsto haver este tipo de exceção infeliz. Agora que já tens o parecer da própria Adriana, espero que compreendas, por fim, aquilo para que tentei alertar-te há bocado. Percebo pela maneira como te expressas aqui que és bastante inteligente ao contrário do que pensava. Usa-o para o bem.

 

Joel

 

Ao sair da sala para ir beber café, esqueci-me do diário na mesa e, quando fui aos Perdidos e Achados, encontrei estas mensagens. A do Joel não me incomoda muito. Como está escrita a lápis, posso apagá-la mais tarde, mas a da Adriana… fez-me lacrimejar. Ainda por cima, foi escrita numa cor diferente, realçando ainda mais a repulsa cortante. Contive-me para não chorar em público. No entanto, o impacto da sua recusa foi de uma brutalidade indescritível. Já me tinha sentido abalado pelos vários nãos que recebi até à data, mas, por alguma razão, nenhum buraco se compara ao que a Adriana acabou de abrir. Igual na forma de atração. Diferente na forma como provoca a minha reação ao choque.

Sim, é verdade. A partir do momento em que vejo o envelope, é tudo inventado. A minha admiradora nunca mais me escreveu. A Adriana só quer distância de mim e agora já nem sequer tenho o Joel. Pensando bem, da mesma maneira que estava a criar uma ligação forçada à primeira, também estava a criá-la ao segundo. A rapariga não me quer como namorado e o rapaz não me quer como amigo.

Porém, eu sinto tudo com imensa intensidade. Não sei agir de outro modo. Sempre que sinto uma empatia por alguém, surge de imediato em mim a vontade de ser o seu melhor amigo. Há quem não suporte a humanidade por ter perdido a fé nela, mas eu daria este mundo e o outro a toda a gente se fosse humanamente possível. Até era capaz de perdoar à Adriana o atrevimento de não apreciar lasanha. Eu gosto de pessoas incondicionalmente, porque são complexas, diversas e esquisitas. O meu fascínio por raparigas é tão grande por serem tão diferentes de mim. Em cada esquina existe um sem-fim de potenciais oportunidades de espanto, pois é divertido gostar da esquisitice dos outros. Só queria que achassem a mesma coisa da minha.

Creio que podia tentar mudar-me, já que não mudo os outros. Contudo, sozinho sou incapaz. Que pessoa seria senão esta? Preciso de ajuda, mas afastei toda a gente. Como posso mudar sem ter ninguém que mo ensine?  Estou ciente de que me excedi ao recorrer à morbidez, ao cantar no meio da aula, ao fazer um pedido de casamento precoce e ao disparar “eu amo-te” demasiado cedo. Mas não sei ser de outra maneira… ajudem-me… não sei… eu não sei…